(21) 98772-9666 cafecostura@gmail.com

Ao longo da história humana, a escravidão assumiu diferentes formas. Mesmo mais de um século após a assinatura da Lei Áurea, em 1888, ela ainda existe e está por toda parte. E desde os primórdios das civilizações, a escravidão é sofrida cotidianamente pela mulher.

E o que tem a moda a ver com isso? Absolutamente tudo. Em sua obra “O Segundo Sexo” (1949), Simone de Beauvoir descreve como as indústrias da moda e da beleza exercem impacto, especialmente, sobre o corpo feminino: “Os costumes, as modas são muitas vezes utilizados para separar o corpo feminino da transcendência: a chinesa de pés enfaixados mal pode andar; as garras vermelhas da estrela de Hollywood privam-na de suas mãos; os saltos altos, os coletes, as anquinhas, as crinolinas destinavam-se menos a acentuar a linha arqueada do corpo feminino do que a aumentar-lhe a impotência. Amolecido pela gordura, ou ao contrário tão diáfano que qualquer esforço lhe é proibido, paralisado por vestidos incômodos e pelos ritos da boa educação, é então que esse corpo se apresenta ao homem como sua coisa.” (1)

Mulheres num provador de roupas – Londres, 1860 (Foto: London Stereoscopic Company/Getty Images)

A indústria da moda escraviza a mulher que consome e, mais fortemente, a mulher que produz: atualmente, 97% das roupas que vestimos são produzidas no estrangeiro, em países marcados pela pobreza e pelas frágeis leis trabalhistas. Dos 40 milhões de empregados na indústria da moda em todo o mundo, 85% são mulheres. (2)

Desde o fim da última década, as denúncias de trabalho escravo envolvendo redes de produção globais têm suscitado debates acerca da responsabilidade corporativa e dos impactos sócio-ambientais da moda produzida em série para consumo rápido e descartável (fast-fashion).

Recentemente, o desabamento do edifício Rana Plaza, em Bangladesh, causou comoção internacional: localizado em Daca, capital de Bangladesh, o Rana Plaza alojava fábricas independentes, com cerca de 5.000 trabalhadores – em sua maioria, mulheres – que produziam para marcas como Zara, H&M, Primark, Benneton, Walmart, Carrefour, The Children’s Place, entre outras. Os funcionários viviam em condições precárias: horas de trabalho contínuo e baixos salários. O edifício desabou em 24 de abril de 2013. As buscas foram concluídas em 13 de maio e o balanço final totalizou 1127 mortos. O incidente já é apontado como uma das maiores tragédias deste século.

 

 

Um breve passeio pela história mostra que ainda temos muito a evoluir: com o advento da Revolução Industrial e a consolidação do capitalismo, a mulher assumiu importância econômica, pois deixou as atividades do lar para participar ativamente da produção. Entretanto, foi um processo lento e doloroso para que ela conquistasse seus direitos trabalhistas.

O feminismo marxista de autoras como Alexandra Kollontai preconizava a liberdade das mulheres ligada a do proletariado. August Bebel, um dos fundadores do Partido Social Democrata da Alemanha, escreveu: “A mulher e o trabalhador têm ambos em comum o fato de serem oprimidos”.

Na França, em princípios do século 19, as operárias têxteis trabalhavam sem descanso e ganhavam bem menos que o suficiente para suprir suas necessidades e de suas famílias. O ambiente das fábricas era degradante, fazendo com que muitas operárias contraíssem doenças como a tuberculose. Algumas, impelidas pela fome, submetiam-se aos constantes abusos de seus empregadores.

Devido a pouca instrução, muitas delas nem sabiam que podiam unir-se em sindicatos para reclamar seus direitos, como ocorre ainda hoje. Em “O Segundo Sexo”, Beauvoir aponta os seguintes dados: “Em 1905 contam-se 69.405 mulheres num total de 781.392 sindicalizados; em 1908 contam-se 88.906 mulheres num total de 957.120 sindicalizados; em 1912 contam-se 92.336 mulheres num total de 1.064.413 sindicalizados; em 1920 contam-se 239.016 operárias e empregadas sindicalizadas para 1.580.967 trabalhadores e, entre as trabalhadoras agrícolas, somente 36.193 sindicalizadas entre 1.083.957, ou seja, ao todo, 292.000 mulheres sindicalizadas num conjunto de 3.076.585 trabalhadores inscritos nos sindicatos. É uma tradição de resignação e de submissão, uma falta de solidariedade e de consciência coletiva que as deixam assim desarmadas diante das novas possibilidades que se abrem para elas.” (3)

Em 1909, a greve das trabalhadoras da fábrica Triangle Shirtwaist, em Nova York, obteve vasta repercussão midiática: a greve, liderada pelas mulheres do sindicato International Ladies’ Garment Workers’ Union, propunha um acordo coletivo por melhores condições de trabalho. O International Ladies’ Garment Workers’ Union foi o primeiro sindicato americano a ter a maioria de filiados do sexo feminino, e existiu até o ano de 1995.

A Triangle Shirtwaist possuía este nome por produzir as famosas shirtwaists (‘camisas acinturadas’), a peça da moda entre as mulheres do fim do período vitoriano até a era eduardiana. Entretanto, a produção dessas peças de luxo custava a vida de centenas de jovens moças imigrantes – grande parte proveniente da Itália -, que trabalhavam 14 horas por dia em troca de um parco salário que variava entre 6 e 10 dólares semanais.

As condições de trabalho eram as piores imagináveis: as operárias viviam amontoadas entre si, num ambiente que abrigava têxteis inflamáveis e era iluminado a gás. No dia 25 de março de 1911, irrompeu o incêndio que causou a morte de 147 operários, sendo 124 mulheres e 23 homens. O evento tornou-se conhecido como a origem do Dia Internacional da Mulher.

Entretanto, a criação do Dia da Mulher não foi impulsionada por este único evento, mas por uma série de acontecimentos que se iniciaram na segunda metade do século 19, quando as mulheres começaram a batalhar por melhores condições de protagonismo na sociedade e pelo direito ao voto. Em 1910, um ano antes do incêndio na Triangle Shirtwaist, a militante socialista alemã Clara Zetkin já havia proposto na II Conferência Internacional de Mulheres Socialistas, em Copenhague, “uma jornada especial, uma comemoração anual de mulheres”.

As atuais demandas pela ética corporativa na indústria e o consumo consciente provam que moda e política não são indissociáveis. O feminismo não deve calar-se diante da escravização perpetrada contra mais de 30 milhões de mulheres, responsáveis por dar sustentação a uma das principais indústrias do setor econômico mundial. Aos poucos, desconstrói-se a falácia (ou a ilusão) da ‘democratização’ da moda. Não é possível falar em democracia se a moda não assume seu caráter libertário. E esta liberdade deve ser para todos.

Referências:

(1) (3) BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – Vol. 1: Fatos e Mitos. Tradução de Sérgio Milliet. Difusão Européia do Livro – São Paulo, 1970;

(2) The True Cost.

Foto de abertura: Reprodução

Fonte: https://imperioretro.blogspot.com.br/2016/06/exploracao-de-mulheres-na-i…